Duas faces, duas realidades.
A família é o primeiro projeto da natureza humana, a família influência e é influenciada por seus membros. Geralmente usam o mesmo sobrenome e compartilham das mesmas características físicas que são herdadas dos antepassados como cor de cabelo, olhos, pele etc. É na família que iniciamos a construção dos nossos sub sistemas. Minha família: eu , meus pais e meus irmãos e irmãs, um pequeno sistema; minha avó e meu avô e meus tios e tias, outro sistema; minhas tias e tios juntamente com seus pares e filhos outro sub sistema. Cada membro desse sub sistema tem uma função, ser pai ou ser mãe por exemplo, mas também se localiza em determinado nível de poder.
A hierarquia é que vai ditar esse nível, o avô tem mais poder que o pai, o irmão tem menos poder que pai e o avô, assim será com todos os membros que forem se somando. O ciclo da vida passa então de geração a geração com suas hereditariedades, crenças e valores. Quando se cresce e se casa soma-se a esse sub sistema o sub sistema da família do marido ou da esposa. Pequenos núcleos que somados passam a formar um núcleo maior que integrado a outros núcleos formam a sociedade.
Os pequenos sistemas individuais formam o grande sistema familiar que integra todos os membros e vai integrar o sistema da vida. Cada família tem sua própria configuração familiar, nem sempre contamos apenas com pai mãe e filhos, muitas das famílias atuais, são compostas apenas pelos avós e a mãe ou pai mais os filhos, outras famílias podem apresentar, para pai e mãe, duas figuras masculinas ou femininas ao invés do casal hétero anteriormente utilizado. Algumas vezes as crianças ficam com os avós e os pais ou mães não estão presentes, ou alguma outra configuração mais moderna.
O Viver em família exige que um conjunto de exigências a ser cumprido. Mesmo nas mais diferentes formas atuais, a hierarquia, costuma ser respeitada, quando não é respeitada pode-se observar, que em algum ponto, essa família não funciona em plenitude. Os filhos respeitam e aprendem com os pais e avós e esses respeitam e ensinam os filhos e netos, passando adiante os valores e crenças de cada famílias. Muitas vezes os mais novos não concordam com as crenças e valores impostas pelos mais velhos, dificultando a convivência.
No decorrer do tempo algumas famílias adoecem e suas crenças e valores acabam por se tornarem pesadas e sem sentido, o que prejudica o sistema familiar. Quando um filho não se identifica com a forma de viver de seu sub sistema, ele passa a procurar alguém que se encaixe ao seu modo de viver dando início a um novo sub sistema diferente do precedente, interrompendo aquele ciclo e iniciando um novo, com o qual, ele agora se identifica.
A pandemia nos convida a estar em casa com a família, o isolamento social convidou a uma convivência mais intima, com esses membros, que muitas vezes, não se identificam completa ou mesmo parcialmente. Em uma família saudável os membros se respeitam. A arte de dividir o mesmo espaço que já é difícil por natureza, parece que a casa diminuiu, os ambientes tornam-se pequenos para todos os membros, mas o esforço conjunto permite que se consiga estruturar e conviver com essa dificuldade. Nos ajustamos ao espaço apertado, conseguimos nos movimentar e nos entender. Interagir e conviver é uma meta alcançável para essa família funcional.
Se a família se apresenta na disfuncionalidade, onde seus membros não se respeitam e não tem a mesma linha de pensamento, a convivência se torna muito mais difícil. Aqui o espaço não é o único problema, somasse a ele a falta de respeito pelo outro, a diferença de pensamentos e ideias, não permitindo que haja integração para superar o espaço apertado que restou. Se a família não é, por assim dizer "saudável" tudo fica mais difícil, sem espaço, sem respeito e com muitas diferenças de pensamento a convivência caminha para o insuportável.
A disfuncionalidade da família não está diretamente ligada ao poder aquisitivo, mas, aos valores e crenças. Uma casa grande com pessoas que pensam diferente, sobrevive entre agressões e insultos, cada membro, uma vez mais irritado se distancia do outro, trancado consigo mesmo, em seu ambiente particular. Quando se agrega a essa disfuncionalidade a falta do poder aquisitivo, a um ambiente conjunto e sem espaços privados, as dificuldades se multiplicam. Falta de espaço e falta de poder financeiro juntos deixam os sujeitos acuados e sem ação. Lidar com essa situação exige uma maturidade nem sempre existente, por parte dos membros, a conscientização da situação e o pensar no prover se torna difícil em um espaço onde os membros já não se escutam nem se respeitam.
Em nossa vida diária cada membro da família tem uma gama de atividades durante o dia e acaba por se encontrar somente em curtos períodos dentro de casa. Há muito tempo não se tem mais o costume de fazer as refeições em conjunto, na mesma hora, no mesmo local. A vida corrida faz com que os jovens comam nos quartos com seus afazeres e tarefas, entre um mastigar e outro se encaixam as conversas virtuais, que mesmo quando estamos à mesa acabam acontecendo, quando se tira o celular desse jovem ele tende a ficar mudo ou agressivo. Algumas pessoas assistem televisão com os pratos na mão, engolindo a comida. Os pais chegam em casa cansados, muitas vezes trabalham por dois turnos seguido, não tem tempo de dar boa noite aos filhos, mal se vêm, dizer boa noite, já está difícil. E agora, com a família reunida em casa, não sabem o que fazer, não sabem interagir, são estranhos a seus pares. É muito tempo para se passar dentro de um ambiente onde, antes, apenas comiam e dormiam, pessoas que mal se conhecem, apesar de ter a função de família.
Antes da quarentena, quando se ficava zangado com algum membro desse sistema familiar, a pessoa poderia sair e conversar com outros amigos ou parentes, mas, agora estando convidados a desestressar no mesmo ambiente onde se estressou e a conviver com pessoas que discordam do seu ponto de vista, da sua forma de ver a vida, que não te compreendem, então, usam a agressão sua válvula de escape. Existem várias formas saudáveis de conter a raiva e desestressar, a mais comum seria conversar e resolver os problemas chegando a um ponto incomum nem sempre uma solução, mas com respeito a opinião do outro, mas, elas são ignoradas. Algumas pessoas, então, engolem suas mágoas, outras distribuem gritos e agressões o que prejudica a convivência.
Famílias saudáveis tendem a amadurecer e crescer com os problemas diários. Famílias disfuncionais não tem essa sorte, todo tipo de problema torna-se um grande obstáculo para o crescimento e aprendizado, visto que cada membro defende um ponto de vista e não aprendeu a escutar o outro. Acabam por não conseguir resolver seus problemas que vão se acumulando dia após dia. Em um ambiente com muito espaço e companheirismo os problemas são resolvidos com conversas em um ambiente com hostilidade frequente os problemas se acumulam.
Nas famílias disfuncionais a diferença de pensamento, se destaca, as pessoas envolvidas estão acostumadas a defender o seu ponto de vista nem conversar, muitas vezes se impõe com gritos e agressões. Nesse ambiente as pessoas costumam ser rígidas e não mudam de ideia. Elas não buscam se ajustar a novas situações, querem apenas se impor. O que prejudica o conviver em família, guardam rancor uns dos outros membros porque não pensam como eles gostariam.
O desemprego agrava a situação desse sub sistema disfuncional, uma família precisa de alimentos eles são a fonte de sobrevivência e prazer primário. A falta do recurso financeiro, a fome, a dificuldade de entrosamento dos membros dessa família são grande empecilho para que a situação se amenize. É difícil ter que prover sem renda. É difícil pensar com fome. É difícil ver o outro sendo feliz quando falta o mínimo para sobrevivência. Para essa família mudanças parecem impossíveis de se alcançar, a vida se repete, e agora se agrava com a proibição para sair de casa e buscar o sustento. O ciclo vai se fechando e esses provedores, com suas dores acumuladas, não de ontem, mais de muito tempo, só conhecem uma forma de extravasar. Com graus muito altos de pessimismo e dificuldade de ver uma saída, acabam por projetar suas dores nos outros membros da família, espancam seus filhos, suas esposas, maridos, quem estiver por perto, muitas vezes, levando a morte.
Bullying e violência doméstica são retratos de dores passadas, fazer com o outro o que fizeram para mim. Em algum ponto esse membro da família foi forçado a estar em um espaço onde não cabia mais. Por muito tempo se acostumou a sair da situação em que se encontram “espairecendo”, dando uma volta, passando a mão na cabeça e dizendo para si mesmas que isso vai mudar. Mas a pessoa não muda, os problemas se acumulam e o ciclo se repete. A pessoa precisa entender que se ela não mudar sua forma de agir, a sua vida e a vida à sua volta, não muda.
A violência doméstica aumentou na proporcionalidade em que os pares devem permanecer em casa. Marido e família, esposa e família, Pais e filhos, convivendo em um ambiente onde a hostilidade está presente desde sempre, onde tudo se resolvia com uma volta, sem dar a atenção merecida, cada qual engolindo seus pontos de vista e com medo de que o outro descubra que você não concorda. Por vezes, quando um dos membros tentou se impor, acabou no hospital e/ou na delegacia, o que traz um sofrimento ainda maior que a própria discussão ou agressão.
A criança sai de casa e na rua ou na escola desconta em seus colegas, a violência recebida do ambiente onde vive. Não sabe se defender, ela aprendeu assim com as disfunções indivíduo/ambiente de onde vive, onde deveria receber apoio, amor e confiança, recebeu maus tratos, cresceu com gritos, com agressões físicas, muitas vezes, essa criança se ajustou para sobreviver no modo “ eu aguento tudo” “eu sou o bom” e “sou melhor que você” e todo mau trato que recebeu ela passa adiante, agredindo o outro, ou ambiente que frequenta, depredando e quebrando bens alheios. Em alguns casos pode se tornar submissa e ser alvo de novos maus tratos em qualquer ambiente. Tudo depende da forma como acabou se ajustando, disfuncionalmente, para sobreviver.
Quando esse indivíduo vê o outro como uma ameaça aos poucos ele vai perdendo a capacidade de ser empático ou sensível. Se esse indivíduo for bem orientado na adolescência o processo pode reverter, caso contrário ele leva para a vida, projetando no outro suas dores. Quem pratica o bullying geralmente foi vítima, ele próprio, de bullying e agressões.
Os problemas que são expressos na forma de violência para resolver os conflitos internos desse indivíduo, são levados para toda a vida na forma de comprometimentos na saúde, problemas sociais, problemas educacionais, envolvimento em atividades ilícitas etc., eles comprometem a vida do sujeito em todas as atividades que vier a produzir, tendendo a ser a solução para resolução de todos os conflitos.
Na vida adulta essa reprodução pode aparecer na vida doméstica. A violência doméstica costuma ser a reprodução dos maus tratos sofridos e observados durante o crescimento. O padrão aprendido na infância, que se desvia da cultura geral, reforça-se na adolescência e persiste na vida adulta levando, ao longo do tempo, ao sofrimento e prejuízos para o indivíduo e sua família. Vindo de uma família disfuncional, adoecida, esse sujeito aprende e repassa. Esse ciclo tende a acabar somente se, após muitas perdas e dores, o sujeito resolver que não quer mais isso em sua vida e procura uma forma de mudança , um psicoterapeuta, muitas vezes, não se finda, sendo passado adiante por gerações que se acostumaram a essa forma de viver.
Quando se é possível identificar e tratar essa disfunção na família, as próximas gerações acabam por quebrar o ciclo de violência e iniciar um ciclo mais saudável. A dificuldade está na baixo auto estima que os membros dessa família acabam trazendo na bagagem desde cedo. Pessoas submissas sem vontade de sair do ciclo, o que permite que ele se repita, que já foi assim com minha mãe, com minha avó, meu pai fazia isso, uma cultura de violência que se reproduz no modo automático.
Quebrar o ciclo da violência exige perseverança, vontade, paciência, amor-próprio, muitas vezes a união é até esfeita e quando se encontra um novo par ela se reinicia. O problema está na aceitação do problema, no achar comum ser tratado dessa forma. Quebrar esse ciclo exige limpar a ferida do passado, aprender a viver de outro modo, e isso doí.
Uma parcela das mulheres ainda traz a crença de que o casamento deve ser para toda a vida, então, contorna os conflitos do pai com seus filhos, engole suas mágoas pelo medo de enfrentar a sociedade, outras vezes ela não se achar capaz de prover sustento para si e para os filhos, ou se consegue se sustentar, existi a possibilidade de voltar a morar em um local com menos prestígio ou voltar para a casa dos pais. Acabam por se vitimizar, baixam sua autoestima, adoecem.
Em pessoas que acreditam ter perdido o controle de suas vidas, a ansiedade e a depressão, acabam por aflorar. Essas pessoas sentem as tarefas se acumulando e sufocando, sentem falta da rotina, fantasiam o futuro, tiram os pés do presente. O convite para permanecer em casa, neste ambiente onde anteriormente, seria somente para descansar, se alimentar e dormir, agora, é onde se deve fazer tudo. A residência agora é local de trabalho, de laser, de aprender, de fazer atividade física. Para muitos, não se faz necessária a troca do pijama, fazer maquiagem ou fazer a barba. Quem trabalha em home office por vezes se pega com uma roupa mais gasta de chinelos, trabalhando sentada na cama ou no chão, sem a formalidade antes exigida, acaba por perder a referência. Quem não precisa trabalhar pode preferir nem sair da cama.
Se faz importante estabelecer uma rotina durante esse período. Estar com os membros da família. Estar só e executar seu trabalho ou estudo. Fazer alguma atividade física. Ter uma atividade de laser. Tudo dentro de um único ambiente. Sua casa.
Muitos dias já se passaram desde o início da quarentena, as pessoas ainda estão adoecendo, ainda estão morrendo e quem está saudável quer sair de casa, ter sua vida de volta. Contornar essa situação onde os gatilhos estão armados, aguardando um click para estourar e adoecer de uma maneira ou de outra, não é fácil, na realidade é o desafio que foi lançado “mantenha-se saudável” e "conviva em família" parecem ser atividades controversas.
Manter-se saudável dentro de casa exige muito mais trabalho. Ficar conectado ao presente o tempo todo, parece impossível. Aceitar os fatos é o primeiro passo, criar uma rotina vem a seguir, entender que não se pode controlar o mundo e, então, aproveitar, aprender, conhecer e interagir com os membros dessa casa, fazer atividades juntos, viver como parceiros, como família.
Independentemente do local de residência, do tamanho do seu local de confinamento, desse ambiente interno ser positivo ou negativo: - Busque momentos felizes. - Colecione coisas boas. - Agradeça. - Perdoe. A mudança se inicia dentro de cada um.
Agradeço sua visita,
Selma Bueno Alves
Psicóloga Clínica
Pós graduanda em Neuropsicologia
CRP 02/22741